Le combat spirituel est aussi brutal que la bataille d'hommes; mais la vision de la justice est le plaisir de Dieu seul.
Arthur Rimbaud
O único livro que Arthur Rimbaud publicou em vida foi custeado por ele e pela mãe e vendeu pouquíssimos exemplares: Une Saison en Enfer, Uma Estação no Inferno, que preferimos traduzir em português por Uma Estadia no Inferno, embora também já tenha sido traduzido como Uma Temporada no Inferno. O livro foi publicado em outubro de 1873 por uma pequena gráfica de Bruxelas, na Bélgica, mas na hora de efetuar o pagamento faltou dinheiro ao poeta, e quinhentos exemplares ficaram retidos. Isabelle Rimbaud afirmou, depois, que o irmão havia queimado a obra, e Paul Claudel chegou a escrever "...a chaminé ornada com uma grande cruz onde ele queimou seus manuscritos". No entanto, em 1901, o bibliófilo Leon Losseau encontrou pacotes que continham a Estadia. Quando o livro ficou pronto, Paul Verlaine estava na prisão por ter atirado em Rimbaud (ver "O Caso Verlaine"). Rimbaud deve ter deixado um exemplar com dedicatória ao amigo na portaria da cadeia. Se um dia alguém encontrar esse livro, terá ganho mais que o prêmio da loteria.
Posso afirmar que Rimbaud viveu a sua estadia no inferno na primavera de 1872. De março até início de maio, ele estava nas Ardenas, nordeste da França, longe de Verlaine. O que me parece seguro:
a) Rimbaud realmente viveu o inferno. Sei disso graças à experiência da loucura.
b) Ele teve sede. O tema da sede aparece na Noite do Inferno e em quase todos os poemas de maio e junho 1872 ("Lágrimas", "Comédia da Sede", "Bandeiras de Maio", "Canção da mais Alta Torre" etc.)
c) A estação no inferno não pode ter acontecido em 1873, já que Rimbaud escreve sobre ela desde abril, nem em 1871, pois ele tem então outras atividades e preocupações. Acontece que a estação só pode ser a primavera ou o verão (ver "Adeus"). Portanto, março e abril de 1872.
Além disso, o único escrito de Rimbaud conhecido nesse período (trecho de carta a Verlaine de abril 1872, citado pelo amigo Ernest Delahaye) é propriamente delirante. E "Adeus" se refere à viagem de navio para Londres em 4 de setembro 1872; portanto, poucos meses depois da estação infernal.
Acredito que Rimbaud (assim como Verlaine, Baudelaire e outros grandes poetas) diz a verdade. Não são apenas imagens ou metáforas, é verdade. Quando Rimbaud afirma ser vidente, muito eruditos ou universitários franceses consideram tal coisa uma bela invenção literária e não chegam a encarar o fato nu e cru: Rimbaud via coisas que a maioria das pessoas não costuma ver. Indo mais longe, se Rimbaud as viu, é porque essas coisas existiram ou existem, não são apenas fruto de sua imaginação. Por essa razão, aqueles que não acreditam em nada que não esteja explicado nos livros escolares perdem uma das grandes forças da poesia.
Outro erro costumeiro dos críticos é querer explicar Uma Estadia no Inferno pela Comuna de Paris. Rimbaud assistiu a essa grande revolta do povo de Paris, que ele defende e retrata em alguns poemas e talvez também em "Democracia", nas Iluminações. Também é verdade que a Estadia é autobiográfica, mas como escreveu Verlaine em Os Homens de Hoje "...espécie de prodigiosa autobiografia psicológica", e não uma autobiografia política. Noite do Inferno, além de Virgem Louca e Alquimia do Verbo são textos essenciais para se entender a luta e o sofrimento que Rimbaud viveu, sem esquecer que os dois últimos - e só eles - estão reunidos sob o título "Delírios".
Parte da obra de Rimbaud foi perdida, a esposa de Verlaine chegou a destruir manuscritos. Verlaine escreveu em Os Poetas Malditos, de 1884, que o poema desaparecido "Les Veilleurs" (Os Veladores) lhe causou a mais forte impressão que jamais sentiu com a poesia! Cita ainda "Les Réveilleurs de la Nuit" (Os Acordadores da Noite) e faz um apelo a quem possuir algum outro para ter a generosidade de o divulgar. O segundo livro em prosa, Iluminações ou Iluminuras, foi publicado à revelia de Rimbaud, e a ordem dos textos é arbitrária. As folhas estiveram com o poeta Germain Nouveau, com o cunhado de Verlaine, com outras pessoas ainda e acabaram nas mãos do escritor Felix Fénéon, cuja classificação dos primeiros textos é a tradicional. Juntaram-se depois os cinco últimos: Fairy, Guerra, Juventude, Liquidação e Gênio. Um estudo exaustivo das correspondências de Rimbaud, Verlaine, Nouveau e Delahaye poderia talvez desvendar outros enigmas desse período da vida de Rimbaud.
Existem muitos mitos sobre a vida de Rimbaud. Um deles é o de que teria feito tráfico de escravos em seus anos de África. Isso é uma calúnia, e embora Rimbaud tenha vendido armas na tentativa de enriquecer (e talvez provar à família que era alguém "sério"), jamais negociou vidas humanas. Outro mito muito enraizado é o da sua tão falada ligação homossexual com Verlaine. Apesar das aparências, é quase certo que Rimbaud não era homossexual, mas Verlaine, depois de dois anos de prisão na Bélgica, tornou-se bissexual e deixou correr a lenda de que teria tido um caso com Rimbaud. Na verdade, quando Rimbaud e Verlaine viajaram juntos à Bélgica e à Inglaterra, Verlaine era recém-casado, e os ciúmes de sua jovem mulher Mathilde ajudaram a reforçar essa lenda. Verlaine atirou em Rimbaud estando fora de si, bêbado e profundamente deprimido. Havia comprado a arma com a intenção de se matar ou... engajar-se no exército espanhol. No julgamento de Verlaine, ambos atestam sob juramento que a acusação de homossexualismo entre eles é uma mentira, segundo Verlaine, "inventada pela minha mulher para me prejudicar", pois os pais de Mathilde queriam que ela se separasse deste poeta escandaloso. Além disso, só se conhecem ligações de Rimbaud com mulheres; por exemplo, com uma viúva italiana em suas andanças pela Europa, e ele também foi casado com uma etíope. Assim mesmo, a lenda do homossexualismo de Rimbaud prevaleceu e aparece até em filme de Hollywood.
O mais famoso poema de Rimbaud, "O Barco Embriagado", é aqui apresentado, além do original francês, em duas versões. Uma das traduções foi feita em parceria com o amigo citarista Alberto Marsicano. A outra é do saudoso Romain Lesage, francês radicado em São Paulo, que foi cineasta e grande admirador da cultura brasileira. Os poemas "Canção da Mais Alta Torre", "Os Sentados", "O Armário", "Os Corvos", "A Estrela Chorou Rosa", "Minha Boêmia", foram musicados em francês pelo compositor, cantor e poeta Léo Férré. A nossa tradução, embora fiel, se encaixa na melodia de Férré e pode ser cantada em português.
Uma Estadia no Inferno é o relato de um misto de delírio e luta espiritual que o jovem Rimbaud viveu na primavera de 1872, nas Ardenas. Arthur Rimbaud e o brasileiro Álvares de Azevedo são casos raríssimos de uma grande obra literária escrita antes dos vinte anos de idade. A nossa tradução procurou sempre se manter a mais fiel possível, pois Rimbaud, que já é um poeta bastante difícil, torna-se incompreensível se o tradutor - como infelizmente tantos hoje no Brasil - não tiver a humildade e a honestidade de ser fiel ao original. De onde vem a força da poesia? Da verdade que ela profere.
* Daniel Fresnot: Nascido na França em 1948, é doutor em Letras pela Sorbonne. Autor do romance A Terceira Expedição e livros de contos e poesia, incluindo Suzana, prosa e outros versos e Rimbaud por ele mesmo, publicados pela Editora Martin Claret. Também é industrial e fundou a Casa Taiguara, que acolhe dia e noite crianças de rua no centro de São Paulo.
' "A luta espiritual é tão brutal quanto a batalha dos homens; mas a visão da justiça é prazer só de Deus." Esta frase é da última página de Uma Estadia no Inferno, que termina assim: "eu vi o inferno das mulheres lá - e me será permitido possuir a verdade numa alma e num corpo".
Oisive jeunesse
A tout asservie,
Par délicatesse
J'ai perdu ma vie.
Ah ! Que le temps vienne
Où les coeurs s'éprennent.
Je me suis dit : laisse,
Et qu'on ne te voie :
Et sans la promesse
De plus hautes joies.
Que rien ne t'arrête,
Auguste retraite.
J'ai tant fait patience
Qu'à jamais j'oublie ;
Craintes et souffrances
Aux cieux sont parties.
Et la soif malsaine
Obscurcit mes veines.
Ainsi la prairie
A l'oubli livrée,
Grandie, et fleurie
D'encens et d'ivraies
Au bourdon farouche
De cent sales mouches.
Ah ! Mille veuvages
De la si pauvre âme
Qui n'a que l'image
De la Notre-Dame !
Est-ce que l'on prie
La Vierge Marie ?
Oisive jeunesse
A tout asservie,
Par délicatesse
J'ai perdu ma vie.
Ah ! Que le temps vienne
Où les coeurs s'éprennent !
Mai 1872
Canção da Mais alta Torre
Ociosa juventude
A tudo oprimida,
Por delicadeza
Perdi minha vida.
Ah ! Que venha o dia
Em que os corações se amem.
Eu me disse : cessa,
E ninguém te via :
E sem a promessa
De mais alta alegria.
Que nada te detenha,
Grandiosa retirada.
Tive tanta paciência
Que para sempre esqueço;
Temor e penitência
Aos céus partiram.
E a sede doentia
Me escurece as veias.
Assim o Prado
Ao esquecimento deixado,
Engrandesce, e floresce
De joio e incenso
Ao zumbir tenso
De cem moscas sujas.
Ah ! Tanta viuvez
Da alma que chora
E só tem a imagem
Da Nossa Senhora !
Será que se ora
À Virgem Maria ?
Ociosa juventude
A tudo oprimida,
Por delicadeza
Perdi minha vida.
Ah ! Que venha o dia
Em que os corações se amem !
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